quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Diagnóstico do sorriso

Alinham-se simétricamente 29 paixões amareladas pelo uso contínuo de nicotina. A arcada sofreu três extrações abruptas em duas intervenções cirúrgicas. As remoções se deram em função de incompatibilidade de sentimentos. O dente de número 12 (entre o canino e o incisivo superiores direitos) apresenta ligeira rotação. Esta, causada por uma decepção amorosa recente. O lábio superior, eleva-se variavelmente ora para a direita, ora para a esquerda. Já pronunciou “Eu te amo” em três diferentes línguas: “Eu te amo, Je t’aime e Te quiero”.  O inferior, em formato de “u”, é densamente irrigado por fluídos cardíacos. Suas terminações nervosas já promoveram impulsos elétricos de grande voltagem quando em contato com lábios alheios. Ainda assim, mantém a aparência inofensivo. A área que envolve a boca é recoberta por pêlos rígidos e serrilhados. Servem para dar proteção ao sorriso em questão. Por disfunção fisiológica ainda desconhecida acabam, por vezes, atraindo (e não repelindo) faces predadoras. O músculo facial esquerdo exibe uma leve depressão quando contraído. Chamada por alguns de “covinha”, ela guarda dúvidas e receios que desaparecem  quando a seriedade retorna à face. De resto, é um sorriso que se comporta dentro da normalidade. Tem duração média de 20 segundos, podendo ocorrer repetidamente em diversos momentos do dia e precipitado pelos mais diferentes sentimentos. 


sábado, 10 de maio de 2008

A semana

Sobe:
-A criatividade.
-A libido. 
-A normalidade.

Desce:
-O exagero.
-O interesse.
-O passado.

E, enquanto isso, oscilam:
-As dúvidas.
-O ritmo. 
-A verdade.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Caminhos

E caminhava não sabia muito bem em que direção. À sua frente:

A- uma guilhotina de prata sustentada por uma corda de veludo vermelho

B- um hipnótico sorriso pendurado em uma face não menos hipnótica

C- a vergonha vestindo luvas brancas e de mãos dadas com o arrependimento (este último completamente nú)

D- um garoto que havia capturado quatro segredos voadores e os amarrara com um fio de nylon

E- uma língua que os poetas usavam para amar, e que, presa em um envelope, estava morrendo

F- um experiente trompete dourado que já havia anunciado guerras, precedido príncipes e chorado mortes

G- três almofadas de cetim (uma azul, uma vermelha e outra amarela) onde se poderia deitar a consciência

H- uma pluma de pavão e um pote de nanquim com os quais se poderia escrever o futuro

I - uma lata de tinta escarlate para cobrir o passado

J- um templo hedonista com grandes arcos e sem portas

K- um arlequim segurando em uma mão três felicidades e na outra cinco alegrias

Eram muitos os caminhos. Escolheu todos.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

PLAT DU JOUR

Profundamente consternado com minha falta de criatividade resolvi que deveria me jogar às experimentações gastronômicas. Pulei da cama e atirei para longe o edredon para mostrar minha irritação (e só então percebi que ninguém assistia a cena... me senti ridículo por uns quatro segundos). Saí em busca de ingredientes. Mas onde, entre as paredes opressoras do meu apartamento, encontraria eu ingredientes exóticos? Ignorei a certeza de que não havia nada por ali e mergulhei nas gavetas, caixas e compartimentos que encerravam meus segredos. Ali no quarto mesmo. Segurei contra o peito tudo o que me parecia aproveitável e caminhei em direção à cozinha. Fui deixando um rastro de caos. O que caiu ficou pelo caminho, como se o que eu estivesse levando nos braços fosse um grande monte de areia. 
Tenho uma mesa na cozinha para duas pessoas (que nunca vieram a ocupá-la) e foi ali que joguei tudo o que carregava. Os ingredientes deitados na madeira crua me olhavam aflitos, sabiam que eu não hesitaria em lançá-los ao fogo. 
O óleo ardia na panela quando joguei algumas fotos de 2007 para refogar. Achei que seria bom para tirar um pouco da acidez. Quando já estavam douradas, num tom meio sépia, acrescentei uns dois casos de Janeiro cortados em cubos pequenos. Selecionei os dois com cuidado, não queria correr o risco de deixar tudo muito picante. Reguei com um pouco de Vodka, pra dar um gosto de Sábado passado e deixei cozinhar por 20 minutos. Mas ainda faltava alguma coisa. Misturar casos recentes, memórias e álcool não era novidade alguma. 
Foi então que me ocorreu: na gaveta da geladeira tinha umas vontades que só iriam amadurecer lá pelo meio do ano. Resolvi antecipar os poderes do tempo: "O fogo há de fazer com que elas fiquem prontas agora!". Deixei ferver por mais sete minutos. 
Servi em um prato de porcelana branca. A fumaça fugia do frio da louça e vinha me tocar o rosto. Quando experimentei, as constatações:

- As fotos perderam a acidez, mas ficaram amargas.
- Os casos perderam o tempero, e ficaram com gosto de nada.
- O álcool da Vodka evaporou, e deixou um gosto de ressaca. 
- As vontades... de tão adstringentes me provocaram o vômito.

Joguei tudo no lixo. Minha última alternativa foi procurar uma receita já pronta. Pensei naquela que um médico me havia prescrito quando tive uns sopros no coração. Mas não a pude encontrar. 
Servi um copo de sono com três cubos de gelo, tomei tudo de uma só vez e voltei ao quarto. Foi um daqueles dias em que eu não estava para a cozinha.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Trilogia dos Desaniversários

1-

Em 1909 o casal De Beauvoir celebrou nostalgicamente os 365 dias vividos pela "petite" Hélène. E dalí em diante, com uma precisão mecânica, a cada quatro estações brindava-se à vida da francesinha. Tão sistematicamente que nem a morte conseguiu travar as engrenagens desse ciclo. Hoje ela faria 100 anos. Em 2058 alguns se lembrarão que ela completaria 150 anos. Isso, é claro, se estivesse viva. O tempo assim, dividido em fatias, eterniza tudo que por ele passa. Comemoram-se conquistas, descobertas e vitórias. Celebram-se também as independências, os enganos e as derrotas. Aniversariam gente, bichos e coisas. Reverencia-se o passado. 

2-

Em 1984:
Os convidados chegavam à festa sabendo que não ficariam ali por mais de três horas. Os que não conseguiam falar foram reunidos em um canto à sombra de uma árvore. Os que já podiam correr, corriam. Pareciam não ser capaz de conter a euforia que aquela tarde de Sábado despertava. Adultos conversavam amenidades enquanto olhavam seus filhos e os dos outros. Contrastavam com os palhaços de papel, com as garrafas de refrigerante e com todo aquele cenário infantil. Alguém que passou por ali extraiu algumas frases de seus devidos contextos:
"O meu já anda a passos firmes!"
"Deixa ele brincar com o seu brinquedo um pouco, Felipe."
"Dá logo o presente pro menino e vamos embora."
"Mãe, eu também quero um disco dos Smurfs"
Por mais que grande parte dos convidados não tinha desenvolvido consciência para saber o que acontecia, todos estavam ali para comemorar o meu primeiro aniversário. Eu não. Em segredo, eu comemorava os 76 anos que eu ainda tinha a viver. 

3-

Fevereiro de 2008 é uma estaca no tempo. Ela marca o primeiro ano de uma história que esqueceu de acontecer. E nem por isso se deixaram de lado as comemorações.
- Estou ligando porque faz um ano que nada aconteceu, lembra?
- Sim, lembro. Estávamos os dois aí e ...
- E aquela música não tocou. Era a nossa música. 
- A lembrança mais doce que tenho daqueles dias foi o momento em que nos propusemos a não viver aquilo tudo. 
- É, foi lindo. Nunca esquecerei o teu olhar enquanto fechava as malas. 
- E eu ainda sinto o gosto do beijo que a gente não deu quando parti.
- Bom, esse ano não me organizei como deveria. No próximo prometo não te mandar umas flores, ou um cartão.
- Ótimo. Até o ano que vem, então.
- Até. E não esquece que eu não te amo.
- (silêncio) ... Eu também não.